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Origens da Democracia, por João Gualberto

Todo conceito nas ciências que estudam e analisam as sociedades deve ser compreendido em determinado contexto histórico e social, afinal ele pertence a mundos datados.

Isso é importante para pensarmos no que temos chamado de nova democracia brasileira – que é a surgida a partir da Constituição de 1988 – e nas condições de sua, digamos, sustentabilidade

Pensemos historicamente, por exemplo, no surgimento dos parâmetros democráticos de gestão da cidade de Atenas, na Grécia Antiga, que foi a primeira experiência da qual temos notícia. Ela só pode ser compreendida em relação ao mundo a que pertencia.

A sociedade era hierarquizada, com dominação masculina e com a presença de escravizados, além de outros elementos. Assim, todos os processos sociais, inclusive aqueles que faziam parte da nascente democracia, refletiam esses parâmetros.

Os ideais contemporâneos da democracia baseada na igualdade e na liberdade aparecem de forma clara em Alexis de Tocqueville. Esse francês de origem aristocrática escreveu notável trabalho sobre a sociedade estadunidense dos anos 30 do século XIX, sob o título Da Democracia na América, cuja primeira edição data de 1835.

Tocqueville foi enviado pelo governo de seu país – juntamente com Gustave Beaumont – aos Estados Unidos para estudar o seu sistema prisional. Os dois passaram nove meses analisando não só as prisões, mas também a justiça, o sistema político e a sociedade como um todo, afinal estavam conhecendo um sistema democrático único no mundo. Juntos publicaram um livro sobre o sistema penitenciário americano, em 1836.

Beaumont escreveu ainda um romance que trata da escravidão norte-americana, mas foi Tocqueville quem escreveu a obra clássica de interpretação do sentido que a democracia havia alcançado na América, como produto das observações dessa viagem. Na verdade, trata-se de um dos trabalhos mais importantes na história da sociologia e da filosofia política. É um marco do pensamento liberal francês.

Junto com Raymond Aron – que produziu mais de um século depois – são os pilares da filosofia política francesa na defesa da liberdade no contexto da democracia, articulada com a ideia de igualdade.

Quando Max Weber escreveu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, ele observou que os reformados ingleses que emigraram para o que são hoje dos Estados Unidos da América o fizeram dentro de um quadro de superação da ordem aristocrática inglesa, cheia de privilégios, de pessoas que podiam mais do que as outras. Na nova terra trataram de varrer esse quadro, por isso, na ausência de estado, organizaram-se para realizar os empreendimentos coletivos de que precisavam.

As obras vitais, como as pontes, ou as continuadas, como a gestão de cemitérios, por exemplo, realizavam-se por meio de processos eletivos. Disso deriva a construção de uma nova forma de escolhas, que acabaram por chegar ao poder local, como as dos xerifes, juízes, prefeitos e até mesmo dos júris populares. Tudo está articulado de forma a dar um ethos democrático a toda a sociedade.

O que Tocqueville bem compreendeu foi o surgimento de um imaginário democrático nessas condições históricas. Embora possamos apontar na obra algumas omissões, como fazem os seus críticos, o fato é que ele conseguiu entender um ponto fundamental: as instituições são todas interligadas entre si.

Não podemos, portanto, projetar o funcionamento da sociedade a partir da arquitetura e do desejo de alguns. Dizendo em termos que gosto de tratar, o imaginário social de uma determinada sociedade tanto integra quanto é integrado por instituições e significações imaginárias, nascidas todas de um mesmo processo, que eu chamo de magma das significações imaginárias. Essas instituições e significações são, portanto, interdependentes, interligadas.

Assim, não se pode compreender nenhuma sociedade ou sistema social fora das condições objetivas de seu surgimento e de sua existência.

As limitações brasileiras para a sustentação de um processo democrático ao longo do tempo devem ser compreendidas a partir do seu surgimento no contexto de um imaginário autoritário, nascido das instituições aqui transplantadas desde o período colonial e nunca suficientemente superado.

Somente salvaguardas fortes podem conter o desejo autoritário de boa parte de nossas elites, que adoram, aliás, abraçar propostas antidemocráticas, como muito bem vimos recentemente.

João Gualberto, cientista social, professor emérito da Ufes

Origens da Democracia, por João Gualberto