Dia desses tomei conhecimento de uma significativa certidão, datada e assinada por um Oficial de Justiça. Dava conta da impossibilidade de intimar dada pessoa por conta da absoluta falta de condições de trafegar no bairro onde esta residia – trata-se de uma área sob o controle do crime organizado.
De onde é esta certidão? De praticamente todas as grandes cidades brasileiras. De quando? Há décadas é assim.
Fiquei a meditar longamente sobre este quadro. Afinal, tudo isto vem acontecendo ali do lado, à vista de todos, a poucos metros das sedes de poderes constituídos da República Federativa do Brasil ou de suas instituições mais sagradas.
A verdade amarga é que a cerca de 3 km de qualquer sede de poder constituído de praticamente qualquer grande cidade brasileira há bairros nos quais a lei que impera é a do crime. São locais nos quais o Estado raramente se atreve a entrar, seja para qual finalidade for.
Coloquei-me a meditar sobre o documento que deveria ter sido objeto de cumprimento pelo Oficial de Justiça. Ele inicia exibindo um vistoso brasão. Logo abaixo, a indicação “Poder Judiciário”. Mais alguns centímetros e pode-se ler a expressão “O Exmº Sr. Dr. … MANDA … ao Oficial de Justiça … que intime” dada pessoa.
Fico a pensar na cena de um meirinho suplicando a um “chefão do crime” que aponha seu “cumpra-se” a tal vetusto documento, tão pródigo em brasões e títulos. Talvez, no final das contas, o dito cujo esteja a entender que “Excelência”, “Senhor” e “Doutor” seja ele – e dentro de um raciocínio rigorosamente lógico, pois na realidade foi quem conferiu validade prática ao mandado judicial.
Que dizer da imagem de um emissário do tão solene “Mundo das Leis” enfrentando, com seu vistoso mandado judicial, escopetas e até granadas de mão em plena luz do dia? Não o protege documento tão sério – e nem sua reluzente identidade funcional, não menos rica em títulos, brasões e advertências.
Contemplo a bandeira do Brasil. Leio a expressão “Ordem e Progresso”, tão orgulhosamente ali lançada. Começo a compreender por qual motivo o desenvolvimento nos tarda tanto a chegar.
Talvez, diante desta realidade tão pungente, devêssemos pensar em retirar de nossos documentos oficiais os brasões e títulos que os adornam – seria menos humilhante para todos nós. E para o Brasil.