Em meados do Século 18, uma voz negra se levantou em meio às trevas da escravidão na sociedade dos engenhos de açúcar do Estado brasileiro onde mais se desenvolvera a cultura que sustentou a economia do Brasil colônia e que vivia o final de um ciclo: o da cana-de-açúcar.
Pernambuco havia sofrido forte influência da presença, por quase três décadas, cem anos antes, de protestantes holandeses que buscavam estabelecer sua própria colônia na continente sul-americano e invadiram a cota pernambucana.
Quando Agostino José Pereira viveu, as missões protestantes americanas, vindas da região sul daquele País, escravagista, ainda não haviam chegado para “evangelizar” o Brasil, o que ocorreria cerca de três décadas depois que esse afro-descendente libertário ergueu sua voz diante de uma sociedade escravagista.
Em artigo para o site UOL intitulado “Consciência Negra: conheça Divino Mestre, o Lutero negro” do Brasil”, o jornalista e escritor paulista Edison Veiga registra que Agostinho José Pereira pregava pela liberdade dos escravizados nas ruas do Recife e deixou versos que resumem sua visão religiosa: um cristianismo contrário à Igreja Católica e os argumentos divinos para a abolição.
DISCURSO REVOLUCIONÁRIO
Tudo o que entrou para a história sobre Agostinho José Pereira, o pregador negro que usava a Bíblia para clamar pela liberdade dos escravizados nas ruas do Recife, foi graças à sua prisão, em 1846. Tanto os relatos policiais quanto a repercussão na imprensa acabaram gerando “uma documentação que, se não é farta, é intensa em significados”, pontua o historiador Marcus Joaquim Maciel de Carvalho, professor na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), em artigo acadêmico publicado em 2004.
Àquela altura, o Divino Mestre, como era conhecido, já arrebanhava mais de 300 discípulos, todos negros que se diziam livres ou libertos. “Ele vagava pela cidade discursando de forma revolucionária”, afirma a historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora na USP (Universidade de São Paulo).
Foi detido com sete homens e sete mulheres. Entre seus pertences, estava um exemplar da Bíblia com passagens que falavam de liberdade grifadas. E alguns versos, chamados de ABC, que chamaram a atenção das autoridades.
“A imprensa começou a discutir até onde seria ele um rebelde, que alfabetizava e pregava para negros à beira de uma insurreição, ou simplesmente um fanático religioso cujo único objetivo era converter almas desesperançadas à sua fé”, afirma Carvalho. “Ao prendê-lo, o Chefe de Polícia da Província não teve dúvidas: seu ‘cisma’ era apenas um disfarce para uma insurreição escrava.”
Os versos ABC abordavam a ingratidão “que fazem com os morenos” e diziam que “lá do centro do sertão virá a nossa liberdade”. Afirmavam que Adão — segundo a Bíblia, o primeiro homem — também havia sido negro e que “no princípio do mundo os reis eram morenos”. E, para o pavor da aristocracia de então, lembravam do Haiti. “Oh! Grande é a cegueira desta gente brasileira, não olha para o Haiti e para a América Inglesa.”
A Revolução Haitiana, ocorrida de 1791 a 1804, foi uma rebelião liderada por escravizados e ex-escravizados que conseguiu não só a abolição como a independência da então colônia francesa de São Domingo.
Para o historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), esse compilado de versos permite definir que a pregação do Divino Mestre tinha “um fundo político-religioso”. “É interessante pensar como ele era um agente que mobilizava uma religião cristã em favor da liberdade”, comenta.
Para o historiador, a menção ao Haiti é emblemática. “Havia um medo disso nas elites brasileiras, um medo que isso [algo parecido com a revolução de lá] também acontecesse no Brasil”, aponta.
No depoimento prestado à polícia, Divino Mestre declarou ter 47 anos e afirmou que havia participado, como oficial de milícias, da Confederação do Equador, em 1824 — movimento de caráter republicano que havia eclodido em Pernambuco.
Sobre os versos que carregava, ele negou ser o autor, dizendo que os mesmos haviam sido dados à sua esposa por um sujeito ligado a um grupo religioso da Zona da Mata, próximo à Paraíba. Também interrogada, a mulher disse que havia ganhado o ABC de “um homem que veio do sertão” e que tinha achado o conteúdo “bonito”.
“Na seita liderada por Pereira, havia a ideia de que Deus não era branco. Uma das mulheres detidas afirmou, em depoimento, que havia conhecido “o Senhor” por meio de uma visão. Quando foi questionada se ele era branco ou preto, respondeu que “era acaboclado”.
O LUTERO NEGRO
Quando o naturalista inglês Charles Blachford Mansfiedl (1819-1855) passou pela região, ele se deparou com a história do Divino Mestre e se referiu a ele como “o Lutero negro”. Isso porque em um momento de catolicismo como religião oficial e praticamente única no território brasileiro, o religioso criou uma dissidência cristã que não seguia os princípios da doutrina católica.
Há indícios de que ele tenha tido contato com a literatura protestante, embora não se saiba de nenhum vínculo oficial dele com alguma Igreja ou movimento de origem europeia, como dos holandeses, ou norte-americana, cujas missões ainda não haviam chegado até o Brasil .
“Era difícil enquadrá-lo. Apontá-lo como cismático somente traduzia sua ruptura com o catolicismo; reconhecia-se cristão, mas não era tido como alguém que professasse a lei da reforma; sobre o apelido de Divino Mestre afirmava ser o povo quem o dizia assim”, escreveu o historiador e sociólogo Alexandro Silva de Jesus, professor na UFPE, em artigo acadêmico publicado em 2008.
“[Ele] destituía os santos, desinvestia os padres, seguia somente a lei de Deus. Forjou uma espiritualidade bem ao seu sabor, fez dos homens seus inimigos, aglutinou discípulos.”
A historiadora Machado analisa como “hiperrevolucionário” o discurso do líder religioso, sobretudo pelo conteúdo do compilado de versos. “[Estes] são simplesmente incríveis. Botam o mundo de cabeça baixo. Não foi Jesus negro? O berço da humanidade não é negro?””, interpreta ela. “O Divino Mestre tem uma visão completamente revolucionária da ordem das coisas.”
No tribunal, Agostinho José Pereira foi defendido pelo liberal radical Borges da Fonseca (1808-1872), depois conhecido como um dos líderes da Revolução Praieira, ocorrida entre 1848 e 1850. A imprensa da época chegou a noticiar que o líder religioso foi solto mediante habeas corpus. Reggistra Edison Veiga que, depois disso, não há mais informações sobre ele Agostinho.

PARA SER LEMBRADO
Médico e pastor, o vereador Carlos Bezerra Júnior, de São Paulo, autor da lei paulista de Combate ao Trabalho Escravo, considerada referência mundial pela Organização das Nações Unidas (ONU), disse que Agostinho Pereira fez o que quase ninguém tinha coragem de fazer: ler a Bíblia, levantar-se e enfrentar o sistema.
“Não abaixava a cabeça. falava de libgerrdade, dingidade, de um Deus que não aceitava correntes. Fazia o que Jesus fazia: levantava, ensinava e libertava pessoas. Acreditava numa fé viva, que não aceita silêncio. Quando um negro escravizado aprende a ler a palavra, ele descobre a liberdade. Falava de uma fé libertadora e fé que não liberta, não transforma. E o Brasil precisa de libertação”, disse Bezerra Júnior em post no seu perfil das redes sociais neste 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra.
“Agostinho Pereira negava-se a ser propriedade, a ser acorrentado. Falava de liberdade quando liberdade era proibido. Muito anos de nossos debates modernos, ele já mostrava uma verdade simples: fé sem justiça, não é fé. Evangelho sem libertação não é evangelho. É um brasileiro que os poderosos temiam e a história tenta apagar. Um cristão com a Bíblia aberta e a consciênica acordada. Não era padre nem pastor ordenado. Era um discípulo de Jesus com a Bíblia na mão. Pregava sem dó contra a hipocrisia, a fraude. Falava de um Deus que afronta a normalidade. O Brasil precisa se lembrar desse homem. Um brasileiro que os poderosos temiam”, disse Carlos Bezerra Júnior.











