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A difícil tarefa de coletar cobras vivas para estudos científicos no Brasil

 

*Paulo Sérgio Bernarde, Universidade Federal do Acre (UFAC)/ The Conversation

O Brasil registra uma média de 29 mil acidentes com serpentes por ano, levando a cerca de 130 mortes. E é na Amazônia que ocorre o maior número de casos. Nessa região, ocorrem 38 das 75 espécies de serpentes peçonhentas registradas no Brasil, o que representa aproximadamente metade do total encontrado no país.

No caso de uma picada de serpente numa área remota da Amazônia, algumas questões podem se tornar, literalmente, vitais: qual é a composição do veneno? Os soros disponíveis comercialmente neutralizam de forma eficaz esse veneno? Há uma distribuição desses antivenenos na região? Além da soroterapia, como tratar os efeitos locais das picadas?

Para responder a essas questões, o primeiro passo é estudar os venenos das serpentes da região. E, para fazê-lo, é preciso que os pesquisadores tenham acesso às serpentes.

E é aqui que entra o estudo multidisciplinar que coordeno, envolvendo pesquisadores da Universidade Federal do Acre (UFAC), Instituto Federal do Acre (IFAC), Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Instituto Butantan e outras instituições. Eu e uma equipe de herpetólogos e outros profissionais procuramos por serpentes peçonhentas em florestas no estado do Acre e enviamos os espécimes vivos para o Instituto Butantan, para que sejam estudados.

O projeto “Avanços no tratamento dos acidentes ofídicos: estudos pré-clínicos e clínicos, tratamentos alternativos e descentralização da distribuição de antivenenos para áreas remotas da Amazônia”, aprovado no Edital Iniciativa Amazônia+10 (das Fundações de Amparo à Pesquisa, FAPs, e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq), tem como objetivo obter mais conhecimento sobre a composição dos venenos das serpentes da Amazônia e avaliar se esses venenos são reconhecidos pelos antivenenos comerciais.

Além disso, o projeto propõe tratamentos adjuvantes (administrados além da terapia primária para maximizar sua eficácia), como o uso de inibidores enzimáticos, principalmente para tratamento dos efeitos locais da picada. Por fim, pretende a validar o protocolo de distribuição dos antivenenos em áreas remotas da Amazônia, a partir da sua descentralização.

Para o desenvolvimento das pesquisas, é necessário encontrar as serpentes peçonhentas na natureza. Para isso, nossa equipe realiza expedições, especialmente para o Parque Nacional da Serra do Divisor.

Localizada no extremo oeste da Amazônia brasileira, a Serra do Divisor compreende o ponto mais ocidental do país e, para chegar até lá, a viagem tem início por via terrestre: são 35 Km saindo de Cruzeiro do Sul até o Porto do Japiim, em Mâncio Lima. A partir do porto, a viagem é através de barco pelo Rio Moa e pode levar de 8 a 12 horas, dependendo do tipo de embarcação e da época do ano.

Mapa mostra o estado do Acre e suas fronteiras com Amazonas e Peru. O Parque da Serra do Divisor está marcado em verde, na faixa mais à esquerda do Acre, fazendo divisa com o Peru
Mapa mostra o estado do Acre e suas fronteiras com Amazonas e Peru. O Parque da Serra do Divisor está marcado em verde, na faixa mais à esquerda do Acre, fazendo divisa com o Peru. Crédito: Aymatth2, wikipedia

Na Serra do Divisor, normalmente nos hospedamos na regionalmente famosa Pousada do Miro que, apesar das condições rústicas, é um lugar encantador, com refeições típicas da região. O local é muito procurado por turistas que vão apreciar as belezas naturais e observar a fauna, especialmente de aves e primatas.

Mas nosso alvo de observação é outro: são as cobras peçonhentas, aquelas que produzem veneno em glândulas especializadas e possuem dentes inoculadores da peçonha, podendo causar envenenamentos em seres humanos. Na região do Alto Juruá, onde realizamos as coletas, são conhecidas 12 espécies de serpentes peçonhentas: seis corais verdadeiras, cinco espécies de jararacas e a surucucu-pico-de-jaca.

A gravidade de um acidente numa localidade como a Serra do Divisor pode ser maior, em razão da grande distância que a separa de cidades e hospitais. Por isso, todo cuidado é pouco.

Durante as expedições, que geralmente duram pelo menos cinco dias, precisamos tomar certos cuidados. Além das serpentes, é preciso se prevenir de mosquitos transmissores de doenças como a Malária e de outros animais peçonhentos presentes na região, como arraias, aranhas e escorpiões. Outros perigos que nos preocupam são as tempestades quando estamos dentro das florestas, por conta do perigo de raios e árvores que podem cair.

Foto mostra o pesquisador num lugar escuro, com uma lanterna na testa e segurando uma cobra vermelha, preta e branca
Foto mostra o pesquisador num lugar escuro, com uma lanterna na testa e segurando uma cobra vermelha, preta e branca. Crédito: Arquivo pessoal do autor, Paulo Bernarde

As serpentes peçonhentas geralmente apresentam hábitos noturnos e, para encontrá-las, os herpetólogos fazem procuras noturnas em trilhas nas florestas. A passos lentos, olhamos minuciosamente em cada lado da trilha, usando lanternas e observando do chão ao alto das árvores, até onde nossas vistas conseguem alcançar. Algumas espécies podem ser encontradas até 20 m de altura sobre os galhos das árvores.

Quando encontramos as serpentes, nós as capturamos cuidadosamente e as transportamos devidamente em caixas até a Universidade, de onde posteriormente são enviadas para o Instituto Butantan, em São Paulo, para a pesquisa dos venenos.

Em algumas expedições, chegamos a capturar mais de 20 serpentes. Mas, na ciência em geral e nas pesquisas de campo em especial, nem sempre as coisas saem como esperado. Nas duas últimas expedições, em dezembro de 2023 e fevereiro de 2024, foi encontrada praticamente a metade do número habitual de serpentes.

Acreditamos que o evento climático recente do “El Niño” tenha contribuído para a menor frequência de encontro das serpentes, devido a alterações no regime das chuvas na região. Nossa próxima expedição para a região está prevista para o final deste ano ou início de 2025.

Os elapídeos (uma família de serpentes com 41 espécies no Brasil) são representados na região pelas corais verdadeiras. As seis corais verdadeiras do Alto Juruá pertencem ao gênero Micrurus (M. annellatus, M. bolivianus, M. lemniscatus, M. spixii e M. surinamensis). Mas nenhuma delas tem seu veneno no “pool” da produção do soro-antielapídico (bivalente), que é feito a partir do veneno das espécies M. corallinus e M. frontalis, que não ocorrem na Amazônia.

O interesse nas corais amazônicas se deve ao fato dessas espécies terem a composição bioquímica de seus venenos relativamente menos estudados e com algumas particularidades. A Micrurus surinamensis, por exemplo, ao contrário das demais corais, não se alimenta de anfisbênios (répteis conhecidos popularmente como cobras-cegas ou cobras-de-duas-cabeças) e outras serpentes, mas principalmente de peixes. Com isso, essa espécie apresenta um veneno com certas especializações, direcionado para subjugar peixes, além de possuir outros tipos de presas.

Foto mostra uma cobra vermelha, preta e branca sobre um chão de folhas
Ao contrário das demais corais, a Micrurus surinamensis se alimenta principalmente de peixes. Por isso, possui características específicas em seu veneno e presas. Crédito: Arquivo pessoal do autor, Paulo Bernarde

Os viperídeos (família de serpentes peçonhentas que inclui as jararacas, cascavéis e a surucucu-pico-de-jaca) apresentam grande interesse nessa pesquisa, já que o grupo é o principal responsável pelos acidentes ofídicos no Brasil. A principal serpente causadora de envenenamentos na Amazônia é a jararaca (Bothrops atrox) e é a mais comum na região, encontrada em vários tipos de habitats.

Foto mostra uma cobra com escamas marrons esverdeadas, enrolada sobre o prórprio rabo
A jararaca (Bothrops atrox) é principal serpente causadora de envenenamentos na Amazônia.  Crédito: Arquivo pessoal do autor, Paulo Bernarde

A papagaia (B. bilineatus), de hábitos arborícolas, se destaca pela sua coloração verde, que proporciona uma camuflagem entre as folhagens das árvores das florestas. Ela é uma das espécies que pode ser encontrada nos galhos, a até 20 m de altura.

Outras três espécies de jararacas – a Bothrocophias hyoprora, a B. brazili e B. taeniatus – são mais difíceis de serem encontradas, porque vivem em florestas de terra firme ocorrendo em menor densidade populacional.

Foto mostra uma cobra com escamas beges e marrons enrolada sobre si mesma, ao lado de uma árvore
A surucucu-pico-de-jaca (Lachesis muta) é a maior serpente peçonhenta da América do Sul, mas raramente é encontrada nas florestas de terra firme. Crédito: Arquivo pessoal do autor, Paulo Bernarde

E ainda temos a surucucu-pico-de-jaca (Lachesis muta), a maior serpente peçonhenta da América do Sul, que pode chegar a 3,15 m de comprimento e ocorre em baixa densidade populacional nas florestas de terra firme. Por isso, os encontros com ela também não são frequentes.

Conhecer mais sobre essas serpentes pode nos ajudar produzir tratamentos mais eficazes e mais bem distribuídos pela região amazônica.


A conversa

Texto escrito por Paulo Sérgio Bernarde, Professor titular, Campus Floresta, Universidade Federal do Acre (UFAC)

Este artigo foi republicado de The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original .

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