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Cientistas descobrem que cobra-cega da Mata Atlântica produz nutriente parecido com leite

 

*Carlos Jared, Universidade de São Paulo (USP)/The Conversation

Embora já se soubesse que diversas espécies não mamíferos, como aracnídeos em geral, são capazes de produzir alimentos para nutrir os filhotes, não havia nenhum anfíbio conhecido nessa lista. Agora, isso mudou.

Pela primeira vez, apoiados em informações coletadas desde 1987, podemos afirmar que estes animais têm a capacidade de produzir e alimentar seus filhotes com um nutriente rico em lipídeos e carboidratos muito semelhante ao leite materno. A substância é liberada através abertura cloacal, onde termina o sistema digestivo e reprodutor.

As conclusões desse estudo, que teve duração de quase quatro décadas, estão reunidas em artigo publicado recentemente na revista científica Science, uma das mais prestigiosas do mundo.

Da mesma forma, também observamos, pela primeira vez, que os filhotes de cobras-cegas emitem sons concomitantemente a estímulos táteis. Ao que parece, existe uma associação entre a emissão desses sons e a liberação do “leite” pela mãe. Até então, os estudos haviam registrado apenas que pererecas e salamandras produziam sons, mas nada se sabia sobre as cobras-cegas.

As cobras-cegas possuem atualmente 222 espécies espalhadas pelo mundo, principalmente na região tropical. No Brasil, temos aproximadamente 39 espécies (cerca de 18% do total mundial). Seu comprimento varia desde poucos centímetros até um 1,5 metro de comprimento, como ocorre com a espécie Caecilia thompsoni, da Colômbia.

Na época em que decidimos estudar esses animais, resolvemos observar especialmente a espécie Siphonops annulatus, encontrada em quantidade em plantações de cacau no sul da Bahia, em meio à Mata Atlântica. Ela tem cerca 45 centimetros de comprimento, com dois ou três de espessura.

O cultivo de cacau é frequentemente considerado ecologicamente correto. Voando sobre a região, temos a impressão de uma floresta natural. Esse tipo de plantação, chamada cabruca, é feita preservando as grandes árvores.

A cobertura florestal fornece sombra, essencial para as plantações de cacau, que só florescem na parte mais escura e recoberta por grandes árvores. Dessa forma, toda a região do cacau conseguiu manter boa parte das características ambientais originais, como eram antes da chegada dos colonizadores nos séculos XVI e XVII.

As folhas que caem das árvores são mantidas no chão, garantindo que o solo permaneça sempre úmido e fértil, com uma fauna rica de invertebrados e vertebrados. É nesses locais, úmidos e à sombra, que estão as cecílias. Esse é o ambiente é adequado para manter as cobras-cegas, que vivem estritamente no mundo subterrâneo.

Para os apaixonados pela Teoria da Evolução, o interesse em grupos de animais que diferem de seus pares é frequente. As cobras-cegas são modelos que mostram a extraordinária plasticidade animal para lidar com as imposições do ambiente. Isso tem levado, ao longo de milhões de anos, a adaptações da sua morfologia, fisiologia e comportamento.

Biologicamente falando, a classe dos anfíbios se divide em três ordens. As cobras-cegas, também chamadas de cecílias, compõem a ordem Gymnophiona. Elas são completamente diferentes das espécies pertencentes às outras duas ordens: sapos, rãs e pererecas (pertencentes à ordem Anura) e as salamandras e tritões (pertencentes à ordem Urodela).

Na adaptação ao ambiente subterrâneo, as cobras-cegas perderam as pernas, tiveram os olhos muito reduzidos, ficaram cegas (pelo menos para a formação de imagens, pois veem um pouco de luz) e desenvolveram tentáculos para quimiorrecepção e mecanorrecepção.

Vistas à luz do bom senso, essas questões levam à pergunta sobre o papel dos olhos em um animal que vive na escuridão do ambiente subterrâneo. Por outro lado, quando se observa seu movimento, tem-se a impressão de que as cecílias mergulham no solo.

Essa “fluidez” nos túneis seria complicada sem seu corpo serpentiforme e altamente mucoso. Os tentáculos sensoriais entram em ação, avaliando o ambiente e reconhecendo as características físicas e químicas do solo.

Deve haver muitas outras adaptações, ainda completamente desconhecidas, esperando para serem elucidadas.

Para compreender o contexto do nosso estudo, precisamos voltar no tempo. Há milhares de anos, as cobras-cegas nasciam por meio de ovos, ou seja, eram ovíparas. Ao longo da evolução, as cecílias de ambientes áridos e desfavoráveis adquiriram a capacidade de reter os ovos dentro do corpo, dando origem às cobras-cegas vivíparas.

Isso deu aos filhotes a possibilidade de se desenvolverem na segurança do oviduto materno enquanto a mãe espera condições ambientais favoráveis para liberar os filhotes. De modo geral, os ovos dos anfíbios são frágeis e possuem somente uma cobertura gelatinosa, sendo facilmente dessecáveis.

Em contraste com as outras duas ordens de anfíbios, em que as fêmeas botam os ovos e os machos fecundam fora do corpo, as cobras-cegas macho tem uma estrutura temporária semelhante a um pênis para fertilizar a fêmea. O desenvolvimento embrionário ocorre dentro de ovos (nas espécies ovíparas) e no oviduto (em espécies vivíparas).

A ciência também observou, há cerca de 70 anos, que as fêmeas das cecílias vivíparas são capazes de produzir alimento nas paredes do oviduto (o canal pelo qual o ovo deixa os ovários para sair do corpo), que é usado também para alimentar os filhotes durante a gestação. Eles possuem dentes embrionários (ou fetais), o que é inusitado entre os animais em geral, para extrair o alimento das paredes do oviduto.

Mais tarde, em 1990, uma nova observação, feita apenas nas cecílias ovíparas, mostrou que as mães da espécie, que se enrolam e mantêm os filhotes aninhados, mudam de cor durante o cuidado parental. Durante esse tempo, elas passam do azul chumbo (a cor comum entre os machos e fêmeas) para um tom esbranquiçado e opaco. Filmagens mostraram que essa mudança de cor é resultado de outro comportamento inédito dos filhotes: também utilizando seus dentes embrionários, eles se alimentam da pele da mãe.

Em 2006, meu grupo de pesquisa publicou um estudo comparando cobras-cegas ovíparas dentro e fora do período do cuidado parental. No artigo, mostramos que o interior da epiderme desse animais consistia em uma rica fonte de nutrientes. Esse tipo de alimentação ficou conhecido como “skin feeding” ou “dermatofagia”. Mas uma dúvida permaneceu: a que se devia o espantoso crescimento dos recém-nascidos, que se alimentam da pele lipídica e proteica da mãe somente uma ou duas vezes por semana?

A observação de 16 espécimes coletados na região cacaueira do Sul da Bahia permitiu-nos constatar que as cobras-cegas vivíparas e ovíparas têm glândulas nas paredes do oviduto que produzem uma secreção viscosa e transparente que alimenta os filhotes fora do corpo da mãe. A análise bioquímica dessa substância mostrou que é rica em carboidratos e ácidos graxos, uma composição semelhante à encontrada no leite dos mamíferos.

O nutriente é liberado várias vezes ao dia e ingerido vorazmente pelos filhotes, que competem entre si. É ao menos quatro vezes mais consumido do que o alimento proveniente da ingestão de pele.

O cuidado parental dura em torno de dois meses após a eclosão dos ovos, que sempre ocorre no início do ano, estação quente e com muita chuva. As glândulas secretoras do leite se desenvolvem no oviduto durante esta época, juntamente com a mudança de cor da pele das fêmeas.

Com foco na biologia evolutiva e integrativa, há mais de 50 anos temos estudado a biodiversidade brasileira, com interesse particular em répteis, anfíbios e mamíferos. Durante esse período, observamos o comportamento dos animais diretamente em seus hábitats, especialmente nas florestas Atlântica e Amazônica e na região semiárida (Caatinga).

Investigar o modo de vida das cobras-cegas é extremamente difícil. Elas vivem envoltas pela terra, em um ambiente opaco e inacessível. Essas características são o principal fator que torna as cobras-cegas um dos grupos menos estudados em todas as áreas da biologia.

Os zoologistas mais bem-sucedidos em estudar esses animais são os taxonomistas, que têm como objetivo principal classificar as espécies. Aqueles que buscam investigar a história da vida, integrada ao comportamento, morfologia e fisiologia das espécies, estão sempre em desvantagem.

Em geral, estudos integrados de longa duração requerem um grande gasto de energia. No caso das cobras-cegas, são ainda mais restritos. O acesso (ou coleta cuidadosa) desses animais subterrâneos só é possível por meio de trabalho com enxadas e escavação cuidadosa, com a ajuda de mateiros, em grandes áreas florestais.

É essencial destacar que é necessário um investimento prévio do pesquisador no estudo e convívio com o ambiente no qual trabalhará. Somente por meio desse conhecimento, pacientemente construído, o trabalho de coleta deixa de ser um esforço aleatório para ser uma atividade objetiva e eficiente.

Com a prática, os pesquisadores aprendem as preferências dos animais e os lugares com maior probabilidade de encontrá-los. Mesmo assim, a escavação pode inevitavelmente levar à morte de alguns animais atingidos por enxadadas. Eles são preservados quimicamente e guardados para futuras pesquisas, principalmente morfológicas.

Nas nossas linhas de pesquisa, temos investido muito no trabalho de campo e também no trabalho experimental em laboratório, utilizando variadas técnicas (da microscopia eletrônica à espectometria de massas) para elucidar as adaptações da morfologia funcional e bioquímica.

Apesar da boa infraestrutura do nosso laboratório, frequentemente sentimos que estamos um pouco fora do atual “zeitgeist” (em tradução livre, o espírito da época), que dá grande importância à produtividade. Fato é que, na prática, muitas vezes o estudo dos animais pode levar muito tempo até produzir as evidências necessárias para se fazer uma afirmação sólida. Neste estudo, em curso há quase quatro décadas, descrevemos o longo caminho que nos levou à conclusão apresentada. Ela seguramente inaugura um novo campo de pesquisa ao mostrar que a amamentação deve ter ocorrido ao longo da evolução, de forma independente, também em espécies não mamíferas.The Conversation


Texto escrito por Carlos Jared, Diretor do Laboratório de Biologia Estrutural do Instituto Butantan, Universidade de São Paulo (USP)

Este artigo foi republicado de The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.

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