Como a corrupção, traço perturbador da política brasileira é uma herança de séculos de história

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“Pobre país! A corrupção alimenta a vaidade, para dar vida ao patriotismo.” Assim dizia a legenda da charge do desenhista Ângelo Agostini, publicada em 1867 no jornal carioca “O Cabritão”. Nela, Dom Pedro II observa um balcão de negócios em que homens ricos compram títulos de nobreza, para a vergonha do índio ajoelhado, que representa a população oprimida. Crédito: Ângelo Agostini

*Adriana Romeiro – Professora do Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) / The Conversation

A cada eleição, somos convencidos de que todos os problemas da nação têm origem nos roubos e abusos perpetrados na esfera pública; e quando esses forem finalmente erradicados, alcançaremos o paraíso da prosperidade e da igualdade social.

A percepção do cargo público como um patrimônio privado do qual se pode usufruir à vontade, para fins de enriquecimento pessoal, é um traço da nossa cultura política atual. A distinção entre o público e o privado parece não ter se enraizado completamente na mentalidade da nossa classe política, que, muitas vezes, considera legítimo o ato de um governante se beneficiar do cargo em proveito próprio.

As raízes desse entendimento distorcido das fronteiras entre o público e o privado, no entanto, não são atuais. A história da nossa corrupção é muito antiga. A promessa das riquezas naturais — como o pau-brasil, o ouro e os diamantes — fez com que o Novo Mundo fosse visto como terra de enriquecimento fácil e rápido, o que resultou num certo olhar predatório e numa intenção de espoliação. O Brasil significou, sobretudo para os administradores portugueses, o paraíso da prosperidade, um negócio muito lucrativo…

O risco de se julgar o passado com os olhos do presente

A história da corrupção brasileira ainda é um tema por se estudar. Sabemos muito pouco sobre as práticas de corrupção do nosso passado. Os raros estudos incorrem, muitas vezes, numa visão anacrônica do assunto, medindo a corrupção do passado a partir dos valores do presente, como se esse fenômeno comportasse, em todos os espaços e tempos, uma única definição.

Foto mostra manuscrito de carta, com escrito dos documentos antigos
Carta de Pero Vaz de Caminha (1500) Arquivo da Torre do Tombo, Portugal

Basta lembrar, por exemplo, a interpretação errônea — e fartamente disseminada nos livros didáticos — a respeito de um trecho da famosa carta de Pero Vaz de Caminha. Nesse documento, o fidalgo português suplica ao rei a mercê de libertar o seu genro, degredado para a Ilha de São Tomé por causa de um roubo.

Para o leitor dos dias atuais, isso seria um escandaloso pedido de favorecimento, talvez o primeiro ato de corrupção praticado no Brasil. Esse entendimento revela, no entanto, uma incompreensão da lógica social daqueles tempos, em que se considerava uma obrigação do rei retribuir os favores prestados por seus súditos. É por essa razão que o estudo da corrupção pressupõe o estudo dos contextos culturais próprios de cada sociedade — sob o risco de se julgar o passado a partir do presente.

Corrupção disseminada através dos tempos

Ainda assim, a imagem do Brasil tem sido associada, desde o século XVI, à corrupção. Cronistas e viajantes que estiveram aqui desenharam um retrato implacável da moralidade dos governantes e também dos moradores. A grande distância entre Portugal e Brasil teria favorecido a prática de ilicitudes por parte das autoridades, convencidas de que o braço do rei jamais as alcançaria em região tão longínqua.

Lá pelos idos de 1627, o franciscano Vicente do Salvador afirmou que “nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. Nas teorias da época, esse era um dos traços típicos de uma sociedade corrompida, pois nas repúblicas saudáveis o bem comum deveria sempre se antepor ao bem particular.

Pintura mostra um padre sentado numa mesa, com a mão sobre um papel que está na mesa, onde também se vê um crucifixo e uma pena para escrita
Retrato do Padre António Vieira, de autor desconhecido do início do século XVIII. Domínio público

Uma das vozes que se levantaram contra os excessos e desmandos da cena política colonial foi o jesuíta português Antônio Vieira. Em seus sermões, ele não se cansou de protestar contra os governantes que vinham ao Brasil com o objetivo de fazer fortuna, às custas tanto da população quanto dos cofres da monarquia portuguesa. Essa percepção estendeu-se até o século XIX, quando viajantes e naturalistas ainda registravam a sua indignação diante do grau de corrupção da sociedade brasileira.

O francês Auguste de Saint-Hilaire, por exemplo, comparou os governadores de capitania com os tiranos da Antiguidade, pois, segundo ele, a distância entre a colônia e a metrópole fazia com que o poder do rei esbarrasse em mil entraves, caindo, muitas vezes, no vazio, ou fragmentando-se na figura desses déspotas investidos de uma autoridade ilimitada.

Auguste de Saint-Hilaire, um crítico da corrupção brasileira. Henrique Manzo, Acervo do Museu Paulista da USP

Na mentalidade da época, a política pertencia ao campo da moral. O bom governante era, sobretudo, o indivíduo virtuoso, dotado de qualidades como a honestidade, a generosidade e o espírito caritativo. Ao mesmo tempo, ele deveria reprimir os próprios instintos e apetites, para agir sempre em prol do interesse de toda a sociedade, mantendo uma conduta irretocável em todas as esferas da vida. Isso, porém, não impediu que a corrupção se disseminasse em todos os níveis da administração colonial.

Em Minas Gerais, por exemplo, alguns governadores envolveram-se no contrabando de ouro e diamantes; outros, desviaram os quintos destinados aos cofres do rei, embolsando parte deles. Os livros da contabilidade oficial estão repletos de falsificações, perpetradas com o objetivo de se fraudar as contas públicas.

Um presente que teima em repetir o passado

A famosa rachadinha de que se fala hoje já aparece registrada no início do século XVII: o governador-geral Diogo Botelho foi acusado de distribuir os cargos administrativos entre os seus criados, apropriando-se, depois, de parte dos salários que recebiam.

Foi-se a colônia e o império, veio a república, e o descaso com a coisa pública se manteve. Não à toa, o combate à corrupção tem sido, há quase um século, uma pauta recorrente na vida política brasileira.

A luta contra a roubalheira e a moralização da administração pública foi levantada, por exemplo, pelos opositores do segundo governo de Getúlio Vargas, que criaram a expressão mar de lama para se referirem à bandalheira geral do Estado.

Foto em preto e branco, com vários homens de terno. No centro, Jânio Quadros segura uma vassoura
Jânio Quadros: uma vassoura para combater a corrupção. Senado Federal

Anos depois, nas eleições presidenciais de 1960, Jânio Quadros consagrou a vassoura como símbolo da limpeza que pretendia realizar nas instituições públicas: Varre, varre, varre vassourinha!/ Varre, varre a bandalheira!/ Que o povo já’ tá cansado/ De sofrer dessa maneira…

A bandeira da luta contra a corrupção era inseparável de um projeto de transformação do Estado e de suas instituições. Com sua vassoura, Jânio Quadros pregava uma mudança radical na administração pública. Desde então, a corrupção – e o combate a ela – enraizou-se definitivamente na linguagem política nacional.

Esse cenário confirma a tese do jurista gaúcho Raymundo Faoro, autor do clássico Os donos do poder, sobre o caráter patrimonialista da administração brasileira, marcada pela confusão entre o público e o privado, da qual resultou a apropriação das instituições de Estado, por parte da burocracia, com vistas à obtenção de ganho político e econômico.

Esta concepção sobre a administração evidencia o vigor e a persistência das velhas ideias que, nascidas ainda no século XVI, viam na ocupação de cargos públicos um meio de ascensão econômica e social. Séculos de história legaram-nos uma herança que continua a desafiar o presente, pairando como uma sombra perturbadora no cotidiano da política brasileira.

*Texto escrito por Adriana Romeiro, Professora do Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Adriana Romeiro possui graduação (1987), mestrado (1991) e doutorado (1996) em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Fez pós-doutorado na Universidade de São Paulo e na Universidade Autônoma de Madrid. É professora associada no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil, atuando principalmente sobre a história das culturas políticas em Minas Gerais século XVIII

The Conversation

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